A historiadora Mary Del Priore tem se dedicado, nos últimos anos, a escrever e coordenar livros que aliam o rigor, a precisão e o ineditismo da pesquisa histórica. Nesta entrevista Mary atualmente lecionando no Programa de Mestrado em História,da Universidade Salgado de Oliveira, em Niterói (RJ), fala sobre a trajetória da mulher brasileira, do período colonial aos dias de hoje.
Grosso modo, poderíamos resumir a história das mulheres, no Brasil, como um caminho progressivo que vai de uma vida restrita ao espaço privado em direção à conquista do espaço público?
Um caminho nunca é progressivo. Ele é feito de obstáculos, resistências e ultrapassagens, e o caminho das mulheres, no Brasil, não foi diferente. Ao se falar de espaços privado e público, pode-se cair no equívoco de imaginar que, por estarem muito ligadas à vida doméstica, as mulheres brasileiras não trabalhavam fora de casa. É uma inverdade. Desde os primeiros tempos da colonização do País, a história da mulher é marcada por uma luta muito grande pela sobrevivência.
Já naquela época ela teve que conviver com um fenômeno que ocorre até hoje: o da migração interna da população masculina, que resultava na concentração de mulheres em centros urbanos onde a presença do homem era pequena. Veja-se o caso de São Paulo (SP). No século 18, a cidade era marcantemente habitada por mulheres, pois os homens - maridos e filhos mais velhos - estavam ausentes, seja explorando o ouro no interior do Brasil seja na luta contra os espanhóis. Na prática, essas famílias eram monoparentais, isto é, contavam apenas com a presença da mãe como responsável. Há relatos de viajantes estrangeiros que passaram pelo Brasil no século 17 e registraram, no Rio de Janeiro (RJ) e em Salvador (BA), casos de mulheres tocando pequenos comércios e vivendo de modo completamente independente.
Mas numa sociedade patriarcal, como a brasileira, a mulher não tinha um papel subalterno?
Essa afirmação é pertinente para as elites, em que havia uma preocupação muito grande de subordinação da mulher, inclusive porque o poder econômico e o manuseio do dinheiro deveriam estar sempre em mãos masculinas. Não podemos esquecer também que, pela tradição religiosa, a figura da mulher estava muito ligada à ideia de pecado, basta lembrar a passagem bíblica de Eva e a expulsão do Paraíso. Então esse ser frágil e algo satânico - não nos esqueçamos, por exemplo, da ligação estabelecida entre o feminino e a prática da bruxaria - deveria estar sob a permanente vigilância e submissão de um pai ou marido protetor e provedor para não se perder completamente. Essa condição, porém, era muito menos rígida nas camadas mais pobres da população. Nesse estrato social, a luta pela sobrevivência impunha uma outra realidade às mulheres.
Mesmo nas elites, mais submetidas ao patriarcado, havia mulheres que exerciam grande poder?
Sem dúvida. Foi Antônio Cândido (sociólogo e crítico literário) quem chamou a atenção para o poder das viragos, mulheres capazes de tomar decisões que, tradicionalmente, não estavam no âmbito de seus papéis. O fato de muitos casamentos serem feitos entre homens de mais idade e mulheres jovens fazia com que muitas delas ficassem viúvas muito cedo, tendo que assumir não só a administração da casa como também a dos negócios familiares. Nessa condição, elas acumulavam em suas mãos inúmeras tarefas, desde prover a família - que naquela época era muito numerosa - até dar aos filhos assistência médica, orientação religiosa, ensinar-lhes as primeiras letras e decidir inclusive quais os casamentos mais adequados. Portanto, era um poder muito grande que residia nesse exercício da maternidade. Hoje muitas mulheres perderam a capacidade de aglutinar e explorar todo esse potencial materno e dividem esses diversos papéis sociais com os mais diferentes especialistas, como psicólogos, orientadores pedagógicos, professores particulares etc.
Mas isso não é uma contingência do mundo contemporâneo, no qual as mulheres têm conquistado espaço crescente no mercado de trabalho e exigido maior participação dos homens nas responsabilidades domésticas?
Acho que a mulher contemporânea ganhou certos poderes, mas perdeu outros. Sobretudo a partir dos anos 1980, a mulher brasileira entrou maciçamente no mercado de trabalho e assistiu-se a um grande boom de movimentos feministas e femininos que pretendiam transformar a realidade brasileira, principalmente no que se refere à situação das mulheres. Por outro lado, aquela também foi a década de ouro dos movimentos sociais - muitos deles estimulados pelas Igrejas -, que contavam com grande participação feminina. Além desses fenômenos, devemos lembrar a possibilidade real dada pelo advento dos anticoncepcionais de se optar por uma vida sexual independente do casamento e o grande apelo ao culto do corpo perfeito, com a proliferação das academias de body building [construção do corpo]. Some-se a tudo isso a imposição de um modelo físico que não tem qualquer semelhança com o padrão de beleza da mulher brasileira. O exemplo típico é o da boneca Barbie: magra, loura e de olhos azuis. Então, tudo isso junto vai dar um nó na cabeça das mulheres, mesmo porque muitas delas, em seu íntimo, ainda estão impregnadas de uma cultura machista, que continua a reproduzir através da maneira como educam os próprios filhos.
A senhora poderia explicar um pouco melhor como essa contradição se processa?
Essa independência financeira e sexual conquistada pela mulher trouxe uma série de responsabilidades que se acumularam àquelas que ela já possuía. Mesmo porque foi também nos anos 1980 que ocorreu a apologia do individualismo e, nessa onda do cada um por si, muitas mulheres passaram a viver sozinhas, a terem filhos sem estabelecer um vínculo mais forte com o parceiro e acabaram esmagadas pelas responsabilidades decorrentes dessa situação. Então, no mercado de trabalho, elas tinham que provar que eram tão ou mais capazes que os homens; na família, elas assumiam o papel de provedoras, mas também ficavam com a maior parte dos afazeres domésticos; e não podiam esquecer de cuidar do próprio corpo, pois, no fundo, não conseguiam se libertar do modelo da princesa, que espera encontrar um homem ideal. Basta observar quais os temas tratados pela maioria das revistas femininas. Esse ideal romântico continua muito presente no imaginário da mulher brasileira.
E como ela reproduz essa cultura machista?
Como falei, essa mulher trabalha fora, tem uma série de responsabilidades e chega exausta em casa, mas ela não exige que o filho ou o marido prepare o jantar, lave a louça ou cuide dos afazeres domésticos. Quantas mães exigem, por exemplo, que o filho faça a própria cama? E quando esse rapaz arruma uma namorada é a própria mãe a primeira a desqualificar a menina, que é sempre fútil, pouco prendada etc. Então, agindo assim, ela reproduz essa estrutura rígida de papéis masculinos e femininos que tanto afetam as relações entre homens e mulheres. Por outro lado, a luta pela igualdade de direitos promovida por diversos movimentos feministas levou ao equívoco de transformar a mulher num homem de saia, fazendo-a aderir a uma agenda masculina. Até mesmo na política não há mulheres que defendam uma agenda feminina. Talvez seja o momento de abandonar aquilo que os sociólogos chamam de prisão de gênero e pensar nas complementaridades entre homem e mulher. Tudo bem, os homens exercem liderança, mas as mulheres têm a arte da diplomacia e da negociação. São características complementares que resultam em algo mais rico e eficiente do que simplesmente buscar a todo custo uma igualdade que não deu certo.
Como enfrentar um problema histórico que é o da violência contra a mulher?
É uma situação complexa. Lógico que do ponto de vista legal a mulher conquistou alguma proteção, caso da promulgação da Lei Maria da Penha, mas no cotidiano as agressões continuam. No entanto, queria abordar esta questão por um outro ângulo, que é o fato de a mulher brasileira, com suas atitudes, vir num processo crescente de vulgarização. Conheço muitos países e nunca vi nas bancas de jornal de nenhum deles publicações nas quais as mulheres expõem seu corpo tão à vontade. Essa também é uma forma de coisificar o machismo do brasileiro, querendo ser eternamente essa coisa que o homem vai chamar de "biscoitinho", "chuchuzinho", ou de tudo o que seja comestível. No que diz respeito à representação que tem de si mesmo, a mulher brasileira não vem fazendo um trabalho profundo de conscientização do quanto ela é importante como agente de transmissão de valores e conhecimento. Ela simplesmente esqueceu essa agenda. E essa violência, que deve ser combatida, se alimenta da própria imagem que a mulher brasileira faz de si.
* Entrevista concedida ao jornalista Fúlvio Giannella Júnior, publicada na edição de março de 2009 da Revista Família Cristã
Fonte: Site Família Cristã