Carta de João Paulo II às famílias

29-04-2009 18:12

(Esta transcrição é feito do Jornal L´Osservatore Romano, edição em português, de Portugal; algumas palavras são escritas de forma diferente do português usado no Brasil)

Queridas Famílias!

1. A celebração do Ano da Família oferece´me o feliz ensejo de bater à porta da vossa casa, no desejo de vos apresentar as mais afetuosas saudações e conversar convosco. Faço´o através desta Carta, que inicio com as palavras da Encíclica Redemptor hominis, publicada nos primeiros dias do meu Ministério Petrino. Escrevia então : o homem é a via da Igreja (1).Com esta afirmação, queria sobretudo aludir às múltiplas estradas ao longo das quais caminha o homem, e ao mesmo tempo sublinhar quão vivo e profundo é o desejo da Igreja de o acompanhar no percurso das vias da sua existência terrena. A Igreja toma parte nas alegrias e nas esperanças, nas tristezas e nas angústias (2) do caminho quotidiano dos homens, profundamente convicta de que foi o próprio Cristo Quem a introduziu em todas estas sendas: foi Ele que confiou o homem à Igreja; confiou´o como «via» da sua missão e ministério.

A família: via da Igreja

2. Dentre essas numerosas estradas, a primeira e a mais importante é a família: uma via comum, mesmo se permanece particular, única e irrepetível, como irrepetível é cada homem; uma via da qual o ser humano não pode separar´se. Com efeito, normalmente ele vem ao mundo no seio de uma família, podendo´se dizer que a ela deve o próprio fato de existir como homem. Quando falta a família logo à chegada da pessoa ao mundo, acaba por criar´se uma inquietante e dolorosa carência que pesará depois sobre toda a vida. A Igreja une´se com afetuosa solicitude a quantos vivem tais situações, porque está bem ciente do papel fundamental que a família é chamada a desempenhar. Ela sabe, ainda, que normalmente o homem sai da família para realizar, por sua vez num novo núcleo familiar, a própria vocação de vida. Mesmo quando opta por ficar sozinho, a família permanece, por assim dizer, o seu horizonte existencial, como aquela comunidade fundamental onde se radica toda a rede das suas relações sociais, desde as mais imediatas e próximas até às mais distantes. Porventura não usamos a expressão «família humana», para nos referirmos ao conjunto dos homens que vivem no mundo? A família tem a sua origem naquele mesmo amor com que o Criador abraça o mundo criado, como se afirma já «ao princípio», no livro do Gênesis (1, 1). Uma suprema confirmação disso mesmo, no´la oferece Jesus no Evangelho: «Deus amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito» (Jo 3, 16). O Filho unigênito, consubstancial ao Pai, «Deus de Deus, Luz da Luz», entrou na história dos homens através da família: «Pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu´Se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, (...) amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou´Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado» (3). Se é certo que Cristo «revela plenamente o homem a si mesmo» (4), fá´lo a começar da família onde Ele escolheu nascer e crescer. Sabe´se que o Redentor passou grande parte da sua vida no recanto escondido de Nazaré, «submisso» (Lc 2, 51) como «filho do homem» a Maria, sua Mãe, e a José, o carpinteiro. Esta sua «obediência» filial não é já a primeira manifestação daquela obediência ao Pai «até à morte» (Fil 2, 8), por meio da qual redimiu o mundo? O mistério divino da Encarnação do Verbo está, pois, em estreita relação com a família humana. Não apenas com uma ´ a de Nazaré ´, mas de certo forma com cada família, analogamente a quanto afirma o Concílio Vaticano II do Filho de Deus que, na encarnação, «Se uniu de certo modo com cada homem» (5). Seguindo a Cristo que «veio» ao mundo «para servir» (Mt 20, 28), a Igreja considera o serviço à família uma das suas obrigações essenciais. Neste sentido, tanto o homem como a família constituem «a via da Igreja».

O Ano da Família

3. Por isso mesmo, a Igreja saúda com alegria a iniciativa promovida pela Organização das Nações Unidas, de fazer de 1994 o Ano Internacional da Família. Tal iniciativa põe em realce o quanto seja fundamental a questão familiar para os Estados que são membros da ONU. Se a Igreja deseja tomar parte nela, fá´lo porque ela mesma foi enviada por Cristo a «todas as nações» (Mt 28, 19). Não é a primeira vez, aliás, que a Igreja assume como própria uma iniciativa internacional da ONU. Basta recordar, por exemplo, o Ano Internacional da Juventude em 1985. Também deste modo ela se faz presente no mundo, realizando a intenção grata ao Papa João XXIII e inspiradora da Constituição conciliar Gaudium et spes. Na festa da Sagrada Família de 1993, teve início em toda a Comunidade eclesial o «Ano da Família», como uma das etapas significativas no itinerário de preparação para o Grande Jubileu do ano 2000, que assinalará o fim do segundo e o início do terceiro Milênio do nascimento de Jesus Cristo. Este Ano deve orientar os nossos pensamentos e os nossos corações para Nazaré, onde, no passado dia 26 de Dezembro, aquele foi oficialmente inaugurado com a solene Celebração Eucarística presidida pelo Legado Pontifício. Ao longo deste Ano, é importante redescobrir os testemunhos do amor e da solicitude da Igreja pela família: amor e solicitude expressos desde os primórdios do cristianismo, quando a família era significativamente considerada como «igreja doméstica». Nos nossos tempos, voltamos freqüentemente a esta expressão «igreja doméstica», que o Concílio assumiu (6) e cujo conteúdo desejamos permaneça sempre vivo e atual. Este desejo não esmorece com a consciência das novas condições das famílias no mundo de hoje. Por isso mesmo, é mais significativo que nunca o título escolhido pelo Concílio, na Constituição pastoral Gaudium et spes, para indicar as tarefas da Igreja na situação atual: «A promoção da dignidade do matrimônio e da família» (7). Depois do Concílio, um outro ponto importante de referência é a Exortação apostólica Familiaris consortio do ano 1981. Neste texto, encara´se uma vasta e complexa experiência relativa à família, que, no meio de povos e países diversos, permanece sempre e em todo o lado «a via da Igreja». De certo modo, torna´se´lo ainda mais precisamente lá onde a família sofre crises internas, ou está sujeita a influências culturais, sociais e econômicas nocivas, que lhe minam a estabilidade interna, quando não obstaculizam mesmo a sua própria formação.

A oração

4. Com a presente Carta, quereria dirigir´me não à família «em abstrato», mas a cada família concreta de cada região da terra, qualquer que seja a longitude e latitude geográfica, onde se encontre, ou a diversidade e complexidade da sua cultura e da sua história. O amor com que Deus «amou o mundo» (Jo 3, 16), o amor com que Cristo «amou até ao fim» a todos e cada um (Jo 13, 1), torna possível dirigir esta mensagem a toda a família, «célula» vital da grande e universal «família» humana. O Pai, Criador do universo, e o Verbo encarnado, Redentor da humanidade, constituem a fonte desta abertura universal aos homens como a irmãos e irmãs, e impele a abraçá´los todos com a oração que começa pelas ternas palavras: «Pai nosso».A oração faz com que o Filho de Deus habite no meio de nós: «Onde estiverem reunidos, em meu Nome, dois ou três, Eu estou no meio deles» (Mt 18, 20). Esta Carta às Famílias quer ser sobretudo uma súplica dirigida a Cristo, para que permaneça em cada família humana; uma súplica feita a Ele, através da família restrita dos pais e filhos, para que habite na grande família das nações, a fim de que todos, juntos com Ele, possamos dizer com verdade: «Pai nosso»! É preciso que a oração se torne o elemento predominante do Ano da Família na Igreja: oração da família, oração pela família, oração com a família.Significativo é que, precisamente na oração e pela oração, o homem descubra, de modo tão simples e ao mesmo tempo profundo, a sua típica subjetividade: na oração, o «eu» humano percebe mais facilmente a profundidade do seu ser pessoa. Isto vale também para a família, que não é apenas a «célula» fundamental da sociedade, mas possui mesmo uma própria e peculiar subjetividade. Esta obtém a sua primeira e fundamental confirmação, e consolida´se, quando os membros da família se encontram na invocação comum: «Pai nosso». A oração reforça a estabilidade e a solidez espiritual da família, ajudando a fazer com que esta participe da «fortaleza» de Deus. Na solene «bênção nupcial» durante o rito do matrimônio, o celebrante invoca deste modo o Senhor: «Efunde sobre eles (os recém´casados) a graça do Espírito Santo, a fim de que, em virtude do teu amor derramado nos seus corações, perseverem fiéis na aliança conjugal» (8). É desta «efusão do Espírito Santo» que dimana a força interior das famílias, bem como o poder susceptível de as unificar no amor e na verdade.

O amor e a solicitude por todas as famílias

5. Que o Ano da Família se torne uma comum e incessante oração de cada uma das «igrejas domésticas» e de todo o Povo de Deus! Desta oração, beneficiem também as famílias em dificuldade ou em perigo, as famílias desanimadas ou divididas, e aquelas que se encontram nas situações que a Familiaris consortio qualifica como «irregulares» (9). Possam sentir´se todas abraçadas pelo amor e pela solicitude dos irmãos e das irmãs! A oração, no Ano da Família, constitua sobretudo um testemunho encorajador por parte das famílias que realizam na comunhão doméstica a sua vocação de vida humana e cristã. E são tantas em cada nação, diocese e paróquia! Pode´se razoavelmente pensar que elas constituem «a regra», mesmo tendo presente as não poucas «situações irregulares». E a experiência demonstra como o papel de uma família coerente com a norma moral é importante para o homem, que nela nasce e se forma, ingressar sem hesitações pela estrada do bem, inscrito sempre no seu coração. Nos nossos dias, infelizmente, vários programas sustentados por meios muito poderosos parecem apostados na desagregação das famílias. Às vezes, até parece que se procure, por todas as formas possíveis, apresentar como «regulares» e atraentes, conferindo´lhes externas aparências de fascínio, situações que, de fato, são «irregulares». Estas, efetivamente, contradizem a «verdade e o amor» que devem inspirar e guiar a recíproca relação entre homens e mulheres, sendo assim causa de tensões e divisões nas famílias, com graves conseqüências especialmente sobre os filhos. Fica obscurecida a consciência moral, aparece deformado o que é verdadeiro, bom e belo, e a liberdade acaba suplantada por uma verdadeira e própria escravidão . Perante tudo isto, como ressoam atuais e incentivadoras as palavras do apóstolo Paulo acerca da liberdade com que Cristo nos libertou, e da escravidão causada pelo pecado (cf. Gal 5, 1)! Damo´nos, assim, conta de quanto seja oportuno e até necessário na Igreja um Ano da Família; quão indispensável seja o testemunho de todas as famílias que vivem dia´a´dia a sua vocação; quanta urgência exista de uma grande oração das famílias, que aumente e atravesse o mundo inteiro, e na qual se exprima a ação de graças pelo amor na verdade, pela «efusão da graça do Espírito Santo» (10), pela presença de Cristo entre os pais e os filhos: Cristo Redentor e Esposo, que «nos amou até ao fim» (cf. Jo 13, 1). Estamos intimamente persuadidos de que este amor é maior que tudo (cf. 1 Cor 13, 13), e cremos que ele é capaz de superar vitoriosamente tudo o que não é amor. Neste ano, eleve´se incessante a oração da Igreja, a oração das famílias, «igrejas domésticas»! E faça´se ouvir primeiro a Deus e depois também aos homens, para que estes não caiam na dúvida, e quantos vacilam por causa da fragilidade humana não cedam à sedução tentadora de bens só aparentes, como são aqueles propostos em toda a tentação. Em Caná da Galiléia, onde Jesus foi convidado para um banquete de núpcias, a sua Mãe, também Ela presente, dirigiu´se aos serventes, dizendo: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo 2, 5). Também a nós, entrados no Ano da Família, Maria nos dirige as mesmas palavras. E aquilo que Cristo nos diz neste momento histórico particular, constitui um forte apelo a uma grande oração com as famílias e pelas famílias. Por esta oração, a Virgem Mãe convida a unirmo´nos aos sentimentos do Filho, que ama cada uma das famílias. Este amor foi por Ele expresso ao início da sua missão de Redentor, precisamente com a sua presença santificadora em Caná da Galiléia, presença que ainda agora continua. Rezemos pelas famílias de todo o mundo. Por Ele, com Ele e n´Ele, rezemos ao Pai, «do Qual toda a paternidade, nos Céus como na Terra, toma o nome» (Ef 3, 15).

A CIVILIZAÇÃO DO AMOR

«Ele os criou homem e mulher» 6. O cosmos, imenso e tão diversificado, o mundo de todos os seres vivos está inscrito na paternidade de Deus como sua fonte (cf. Ef 3, 14´16). Naturalmente, está lá inscrito segundo o princípio da analogia que nos permite individuar, já ao início do livro do Gênesis, a realidade da paternidade e maternidade, e, consequentemente, da família humana também. A chave interpretativa está na expressão «imagem» e «semelhança» de Deus, que o texto bíblico acentua com grande relevo (Gn 1, 26). Deus cria em virtude da sua palavra: «Faça´se!» (por exemplo, Gn 1, 3). É significativo que esta palavra de Deus, no caso da criação do homem, seja completada pelos seguintes termos: «Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança» (Gn 1, 26). Antes de criar o homem, o Criador como que reentra em Si mesmo para procurar o modelo e a inspiração no mistério do seu Ser, que já aqui Se manifesta de algum modo como o «Nós» divino. Deste mistério deriva, por via de criação, o ser humano: «Deus criou o homem à sua imagem, criou´o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27).

Abençoando os novos seres, Deus diz´lhes: «Crescei e multiplicai´vos, enchei e dominai a terra» (Gn 1, 28). O livro do Gênesis usa expressões já empregues no contexto da criação dos outros seres vivos: «Multiplicai´vos», mas é bem claro o seu sentido analógico. Não é esta a analogia da geração e da paternidade e maternidade, que se há´de ler à luz de todo o contexto? Nenhum dos seres vivos, à excepção do homem, foi criado «à imagem e semelhança de Deus». A paternidade e a maternidade humana, mesmo sendo biologicamente semelhantes às de outros seres da natureza, têm em si mesmas de modo essencial e exclusivo uma «semelhança» com Deus, sobre a qual se funda a família, concebida como comunidade de vida humana, como comunidade de pessoas unidas no amor (Communio personarum). À luz do Novo Testamento, é possível vislumbrar como o modelo originário da família deve ser procurado no próprio Deus, no mistério trinitário da sua vida. O «Nós» divino constitui o modelo eterno do «nós» humano; e, em primeiro lugar, daquele «nós» que é formado pelo homem e pela mulher, criados à imagem e semelhança de Deus. As palavras do livro do Gênesis encerram em si aquela verdade sobre o homem, que corresponde à própria experiência da humanidade. O ser humano é criado, desde «o princípio», como homem e mulher: a vida da coletividade humana ´ tanto das pequenas comunidades como da sociedade inteira ´ está marcada por esta dualidade primordial. Dela derivam a «masculinidade» e a «feminilidade» dos simples indivíduos, tal como daí recebe cada comunidade a própria riqueza característica, no recíproco complemento das pessoas. A isto mesmo parece aludir a citação do livro do Gênesis: «Ele os criou homem e mulher» (Gn 1, 27). Esta é também a primeira afirmação da igual dignidade do homem e da mulher: ambos são, igualmente, pessoas. Esta sua constituição, com a dignidade específica que daí deriva, define desde «o princípio» as características do bem comum da humanidade, em todas as dimensões e âmbitos da vida. A este bem comum, ambos, o homem e a mulher, dão o próprio contributo, graças ao qual se constata, nas próprias raízes da convivência humana, o caráter de comunhão e complementariedade.

A aliança conjugal

7. A família foi sempre considerada como a primeira e fundamental expressão da natureza social do homem. No seu núcleo essencial, tampouco esta visão mudou hoje. Se bem que, em nossos dias, prefere´se ressaltar na família, que constitui a mais pequena e primordial comunidade humana, quanto provém do contributo pessoal do homem e da mulher. A família é realmente uma comunidade de pessoas, para quem o modo próprio de existirem e viverem juntas é a comunhão: comunhão de pessoas. Também aqui, sempre ressalvando a absoluta transcendência do Criador relativamente à criatura, emerge a referência exemplar ao «Nós» divino. Somente as pessoas são capazes de viver «em comunhão». A família tem início na comunhão conjugal, que o Concílio Vaticano II classifica como «aliança», na qual o homem e a mulher «mutuamente se dão e recebem um ao outro» (11). O livro do Gênesis abre´nos a esta verdade quando, referindo´se à constituição da família mediante o matrimônio, afirma que «o homem deixará o pai e a mãe para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne» (Gn 2, 24). No Evangelho, Cristo, em polêmica com os fariseus, enuncia as mesmas palavras e acrescenta: «Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Pois bem, o que Deus uniu, não o separe o homem» (Mt 19, 6). Ele revela novamente o conteúdo normativo de um fato que existe já «ao princípio» (Mt 19, 8) e que conserva sempre em si esse conteúdo. Se o Mestre o confirma «agora», fá´lo para tornar claro e inequivocável a todos, no limiar da Nova Aliança, o caráter indissolúvel do matrimônio, qual fundamento do bem comum da família. Quando, juntamente com o Apóstolo, dobramos os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade e maternidade recebe o nome (cf. Ef 3, 14´15), tomamos consciência de que o fato de se tornarem pais faz com que a família, já constituída pela aliança conjugal do matrimônio, se realize «em sentido pleno e específico» (12). A maternidade implica necessariamente a paternidade e, vice´versa, a paternidade implica necessariamente a maternidade: é o fruto da dualidade obsequiada pelo Criador ao ser humano, desde «o princípio». Fiz referência a dois conceitos afins entre si, mas não idênticos: o conceito de «comunhão» e o de «comunidade». A «comunhão» diz respeito à relação pessoal entre o «eu» e o «tu». A «comunidade», pelo contrário, supera este esquema na direção de uma «sociedade», de um «nós». A família, comunidade de pessoas, é, pois, a primeira «sociedade» humana. Ela surge no momento em que se realiza a aliança do matrimônio, que abre os cônjuges a uma perene comunhão de amor e de vida, e completa´se plenamente e de modo específico com a geração dos filhos: a «comunhão» dos cônjuges dá início à «comunidade» familiar. A «comunidade» familiar está totalmente permeada daquilo que constitui a essência própria da «comunhão». Poderá haver, no plano humano, uma outra «comunhão» comparável àquela que acaba por se estabelecer entre a mãe e o filho, por ela primeiro levado no seio e depois dado à luz? Na família assim constituída, manifesta´se uma nova unidade, na qual encontra pleno cumprimento a relação «de comunhão» dos pais. A experiência ensina que esse cumprimento representa, no entanto, uma tarefa e um desafio. A tarefa empenha os cônjuges, na atuação da sua aliança originária. Os filhos, por eles gerados, deveriam ´ está aqui o desafio ´ consolidar tal aliança, enriquecendo e arraigando a comunhão conjugal do pai e da mãe. Quando tal não sucede, há que perguntar´se se o egoísmo, que, por causa da inclinação humana para o mal, se esconde inclusive no amor do homem e da mulher, não seja mais forte do que este amor. É preciso que os esposos estejam bem cientes disso. É necessário que, desde o princípio, eles tenham os corações e os pensamentos voltados para aquele Deus, «do Qual toda a paternidade toma o nome», a fim de que a sua paternidade e maternidade tirem daquela fonte a força de se renovarem continuamente no amor. Paternidade e maternidade representam em si mesmas uma particular confirmação do amor, cuja extensão e profundidade original permitem descobrir. Isso, porém, não acontece automaticamente. É, antes, um dever confiado a ambos: ao marido e à esposa. Nas suas vidas, a paternidade e a maternidade constituem uma «novidade» e uma riqueza tão sublime que apenas «de joelhos» é possível abeirar´se delas. A experiência ensina que o amor humano, por sua natureza orientado para a paternidade e a maternidade, é às vezes afetado por uma profunda crise, que o deixa seriamente ameaçado. Há que tomar em consideração, nesses casos, o recurso aos serviços oferecidos pelos consultórios matrimoniais e familiares, mediante os quais é possível valer´se, entre outras coisas, da ajuda de psicólogos e psicoterapeutas especificamente preparados. Não se pode esquecer, todavia, que continuam sempre válidas as palavras do Apóstolo: «Dobro os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade, nos Céus como na Terra, toma o nome». O matrimônio, o matrimônio sacramento, é uma aliança de pessoas no amor. E o amor pode ser aprofundado e guardado apenas pelo Amor, aquele Amor que é «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5). A oração no Ano da Família não deveria concentrar´se sobre o ponto crucial e decisivo da passagem do amor conjugal à geração e, por isso, à paternidade e maternidade? Não é precisamente então que se torna indispensável a «efusão da graça do Espírito Santo», invocada na celebração litúrgica do sacramento do matrimônio? O Apóstolo, dobrando os joelhos diante do Pai, implora´Lhe que «vos conceda (...) que sejais poderosamente fortalecidos pelo seu Espírito quanto ao crescimento do homem interior » (Ef 3, 16). Esta «força do homem interior» é necessária na vida familiar, especialmente nos seus momentos críticos, ou seja, quando o amor, que no rito litúrgico do consentimento conjugal foi expresso pelas palavras: «Prometo ser´te fiel, (...) por toda a nossa vida», é chamado a superar um difícil exame.

A união dos dois

8. Somente as «pessoas» são capazes de pronunciar tais palavras; apenas elas conseguem viver «em comunhão» sobre a base da escolha recíproca, que é, ou deveria ser, plenamente consciente e livre. O livro do Gênesis, ao falar do homem que deixa o pai e a mãe para se unir à sua mulher (cf. Gn 2, 24), põe em evidência a opção consciente e livre que dá origem ao matrimônio, tornando marido um filho, e esposa uma filha. Como entender adequadamente esta escolha recíproca, se não se tem presente a verdade plena da pessoa, ou seja, do ser racional e livre? O Concílio Vaticano II fala da semelhança com Deus, usando termos muito significativos. Ele faz referência não apenas à imagem e semelhança divina que todo o ser humano já possui enquanto tal, mas também e sobretudo a «uma certa analogia entre a união das pessoas divinas entre Si e a união dos filhos de Deus na verdade e no amor» (13). Esta formulação, particularmente rica e sugestiva, confirma sobretudo o que decide a identidade íntima de cada homem e de cada mulher. Tal identidade consiste na capacidade de viver na verdade e no amor; melhor ainda, consiste na necessidade da verdade e do amor qual dimensão constitutiva da vida da pessoa. Essa necessidade de verdade e de amor abre o homem quer a Deus quer às criaturas: abre´o às outras pessoas, à vida «em comunhão», em particular, ao matrimônio e à família. Nas palavras do Concílio, a «comunhão» das pessoas, em certo sentido, deriva do mistério do «Nós» trinitário e, por conseguinte, também a «comunhão conjugal» deve ser referida ao mesmo mistério. A família, que tem início no amor do homem e da mulher, dimana radicalmente do mistério de Deus. Isto corresponde à essência mais íntima do homem e da mulher, à sua constitutiva e autêntica dignidade de pessoa. No matrimônio, o homem e a mulher unem´se entre si tão firmemente que se tornam ´ segundo as palavras do livro do Gênesis ´ «uma só carne» (Gn 2, 24). Homem e mulher por constituição física, os dois sujeitos humanos, apesar de somaticamente diferentes, participam de modo igual na capacidade de viver «na verdade e no amor». Esta capacidade, característica do ser humano enquanto pessoa, tem uma dimensão conjuntamente espiritual e corpórea. É através do corpo também que o homem e a mulher estão predispostos para formarem uma «comunhão de pessoas» no matrimônio. Quando, em virtude da aliança conjugal, eles se unem de tal maneira que se tornam «uma só carne » (Gn 2, 24), a sua união deve´se realizar «na verdade e no amor», pondo assim em evidência a maturidade própria de pessoas criadas à imagem e semelhança de Deus. A família, que daí deriva, obtém a sua solidez interior da aliança entre os cônjuges, que Cristo elevou a Sacramento. Ela recebe a própria índole comunitária, ou melhor, as suas características de «comunhão», daquela comunhão fundamental dos cônjuges que se prolonga nos filhos. «Estais dispostos a receber amorosamente da mão de Deus os filhos e a educá´los...?» ´ pergunta o celebrante durante o rito do matrimônio (14). A resposta dos noivos corresponde à mais íntima verdade do amor que os une. Assim a sua união, em vez de os fechar em si mesmos, abre´os a uma nova vida, a uma nova pessoa. Como pais, serão capazes de dar a vida a um ser semelhante a eles, não apenas «osso dos seus ossos e carne da sua carne» (cf. Gn 2, 23), mas imagem e semelhança de Deus, isto é, pessoa. Ao perguntar: «Estais dispostos?», a Igreja recorda aos noivos que eles se encontram perante o poder criador de Deus. São chamados a tornar´se pais, ou seja, a cooperar com o Criador no dom da vida. Cooperar com Deus no chamamento à vida de novos seres humanos, significa contribuir para a transmissão daquela imagem e semelhança divina, de que é portador todo o «nascido de mulher».

A Generozidade

9. Através da comunhão de pessoas, que se realiza no matrimônio, o homem e a mulher dão início à família. Com a família está ligada a genealogia de cada homem: a genealogia da pessoa. A paternidade e a maternidade humana estão radicadas na biologia e, ao mesmo tempo, superam´na. O Apóstolo, «dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual toda a paternidade 1, nos Céus como na Terra, toma o nome», em certo sentido coloca diante do nosso olhar o mundo inteiro dos seres vivos, desde os espirituais nos céus até aos corporais na terra. Toda a geração encontra o seu modelo originário na Paternidade de Deus. Todavia, no caso do homem, esta dimensão «cósmica» de semelhança com Deus não basta para definir adequadamente a relação de paternidade e maternidade. Quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa. Ao afirmarmos que os cônjuges, enquanto pais, são colaboradores de Deus Criador na concepção e geração de um novo ser humano (15), não nos referimos apenas às leis da biologia; pretendemos sobretudo sublinhar que, na paternidade e maternidade humana, o próprio Deus está presente de um modo diverso do que se verifica em qualquer outra geração «sobre a terra». Efetivamente, só de Deus pode provir aquela «imagem e semelhança» que é própria do ser humano, tal como aconteceu na criação. A geração é a continuação da criação (16). Assim, pois, tanto na concepção como no nascimento de um novo homem, os pais encontram´se diante de um «grande mistério» (Ef 5, 32). Também o novo ser humano, não diversamente dos pais, é chamado à existência como pessoa, é chamado à vida «na verdade e no amor». Tal chamamento não se abre só a quanto existe no tempo, mas em Deus abre´se à eternidade. Esta é a dimensão da genealogia da pessoa, que Cristo nos revelou definitivamente, projetando a luz do seu Evangelho sobre o viver e o morrer humano e, portanto, sobre o significado da família humana. Como afirma o Concílio, o homem é a «única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma» (17). A origem do homem não obedece apenas às leis da biologia, mas sim e diretamente à vontade criadora de Deus: é a esta vontade que se fica a dever a genealogia dos filhos e filhas das famílias humanas. Deus «quis» o homem desde o princípio ´ e Deus «o quer» em cada concepção e nascimento humano. Deus «quer» o homem como um ser semelhante a Si, como pessoa. Este homem, cada homem, é criado por Deus «por si mesmo». Isto aplica´se a todos, incluindo aqueles que nascem com doenças ou deficiências. Na constituição pessoal de cada um, está inscrita a vontade de Deus que quer o homem como fim, em certo sentido, de si mesmo. Deus entrega o homem a si mesmo, confiando´o contemporaneamente à família e à sociedade, como sua tarefa. Os pais, diante de um novo ser humano, têm, ou deveriam ter, plena consciência do fato que Deus «quer» este homem «por si mesmo». Esta sintética expressão é muito rica e profunda. Desde o momento da concepção, e do nascimento depois, o novo ser está destinado a exprimir em plenitude a sua humanidade ´ a «encontrar´se» como pessoa (18). Isto diz respeito absolutamente a todos, também aos doentes crônicos e deficientes. «Ser homem» é a sua vocação fundamental: «ser homem» à medida do dom recebido. À medida daquele «talento» que é a humanidade própria e, só depois, à medida dos outros talentos. Neste sentido, Deus quer cada homem «por si mesmo». Mas, no desígnio de Deus, a vocação da pessoa ultrapassa os confins do tempo. Vai ao encontro da vontade do Pai, revelada no Verbo encarnado: Deus quer oferecer ao homem a participação na sua própria vida divina. Cristo diz: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). O destino último do homem não está em contraste com a afirmação de que Deus quer o homem «por si mesmo»? Se é criado para a vida divina, existe o homem verdadeiramente «por si mesmo»? Esta é uma pergunta´chave, com grande importância tanto ao desabrochar como ao findar da existência terrena: é importante por toda a duração da vida. Poderia parecer que, destinando o homem à vida divina, Deus o subtraia definitivamente ao seu existir «por si mesmo» (19). Qual é a relação que existe entre a vida da pessoa e a participação na vida trinitária? Responde´nos S. Agostinho com as célebres palavras: «O nosso coração está inquieto, enquanto não repousa em Ti» (20). Este «coração inquieto» indica que, de fato, não há contradição entre uma finalidade e a outra, mas sim uma ligação, uma coordenação, uma unidade profunda. Pela sua própria genealogia, a pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus, é precisamente participando na vida d´Ele que existe «por si mesma» e se realiza. O conteúdo de tal realização é a plenitude da vida em Deus, a mesma de que fala Cristo (cf. Jo 6, 37´40), que nos redimiu exatamente para nos introduzir nela (cf. Mc 10, 45). Os cônjuges desejam os filhos para si, vendo neles o coroamento do seu amor recíproco. Desejam´nos para a família, qual dom preciosíssimo (21). É um desejo, em certa medida, compreensível. Todavia, no amor conjugal e no amor paterno e materno, deve inscrever´se a verdade do homem, expressa de maneira sintética e precisa pelo Concílio com a afirmação de que Deus «quer o homem por si mesmo». É necessário, por isso, que a vontade dos pais se harmonize com o querer de Deus: neste sentido, eles devem querer a nova criatura humana como a quer o Criador: «por si mesma». A vontade humana está sempre e inevitavelmente sujeita à lei do tempo e da caducidade. A vontade divina, pelo contrário, é eterna. «Antes que fosses formado no ventre de tua mãe, Eu já te conhecia ´ lê´se no livro do profeta Jeremias; antes que saísses do seio materno, Eu te consagrei» (1, 5). Portanto, a genealogia da pessoa está unida primariamente com a eternidade de Deus e, só depois, com a paternidade e a maternidade humana, que se realizam no tempo. No instante mesmo da concepção, o homem já está ordenado para a eternidade em Deus.

O bem comum do matrimônio e da família

10. O consentimento matrimonial define e torna estável o bem que é comum ao matrimônio e à família. «Recebo´te por minha esposa ´ por meu esposo ´, e prometo ser´te fiel e amar´te e honrar´te, tanto na prosperidade como na provação, por toda a nossa vida» (22). O matrimônio é uma singular comunhão de pessoas. Na base de tal comunhão, a família é chamada a tornar´se comunidade de pessoas. É um compromisso que os noivos assumem «diante de Deus e da Igreja», como lhes recorda o celebrante no momento em que mutuamente trocam o consentimento (23). Desse compromisso, são testemunhas quantos participam no rito; neles se encontram representadas, em certo sentido, a Igreja e a sociedade, âmbitos vitais da nova família. As palavras do consentimento matrimonial definem aquilo que constitui o bem comum do casal e da família. Antes de mais, o bem comum dos esposos: o amor, a fidelidade, a honra, a permanência da sua união até à morte ´ «por toda a nossa vida». O bem de ambos, que é simultaneamente o bem de cada um, deve tornar´se depois o bem dos filhos. Por sua natureza, o bem comum ao mesmo tempo que une as diversas pessoas, assegura o verdadeiro bem de cada uma. Se a Igreja, como aliás o Estado, recebe o consentimento dos cônjuges expresso através das palavras acima referidas, fá´lo porque aquele está «escrito nos seus corações» (Rom 2, 15). São os esposos que se dão reciprocamente o consentimento matrimonial, jurando, isto é, confirmando diante de Deus a verdade do seu consentimento. Enquanto batizados, eles são na Igreja os ministros do sacramento do matrimônio. S. Paulo ensina que o seu compromisso recíproco é «um grande mistério» (Ef 5, 32). Assim, as palavras do consentimento exprimem aquilo que constitui o bem comum dos cônjuges e indicam o que deve ser o bem comum da futura família. Desejando pô´lo em evidência, a Igreja pergunta´lhes se estão dispostos a acolher e a educar cristã mente os filhos que Deus lhes quiser dar. A pergunta refere´se ao bem comum do futuro núcleo familiar, tendo presente a genealogia das pessoas, inscrita na própria constituição do matrimônio e da família. A pergunta sobre os filhos e a sua educação está estritamente ligada com o consentimento conjugal, com o juramento de amor, de respeito conjugal, de fidelidade até à morte. O acolhimento e a educação dos filhos ´ duas das finalidades principais da família ´ estão condicionados pelo cumprimento desse compromisso. A paternidade e a maternidade representam uma tarefa de natureza conjuntamente física e espiritual; através daquelas, passa realmente a genealogia da pessoa, que tem o seu princípio eterno em Deus e a Ele deve conduzir. O Ano da Família, ano de particular oração das famílias, deveria tornar cada família consciente de tudo isto, de um modo novo e profundo. Existe uma grande riqueza de motivos bíblicos, que pode servir de substrato a essa oração. Às palavras da Sagrada Escritura, é necessário juntar sempre a recordação pessoal dos cônjuges´pais, e a dos filhos e netos. Mediante a genealogia das pessoas, a comunhão conjugal torna´se comunhão das gerações. A união sacramental dos dois, selada pela aliança estipulada diante de Deus, perdura e consolida´se na sucessão das gerações. Essa união sacramental deve tornar´se união de oração. Mas, para que isto possa transparecer significativamente no Ano da Família, é indispensável que a oração se torne um hábito arraigado na vida quotidiana de cada família. A oração é ação de graças, louvor a Deus, pedido de perdão, súplica e invocação. Em cada uma destas formas, a oração da família tem muito que dizer a Deus. Também tem tanto que dizer aos homens, a começar pela recíproca comunhão das pessoas unidas por laços familiares. «Que é o homem, para Vos lembrardes dele?» (Sal 8, 5), pergunta´se o Salmista. A oração é o espaço onde, do modo mais simples, se manifesta a recordação criadora e paterna de Deus: não apenas e nem tanto a recordação de Deus por parte do homem, como sobretudo a recordação do homem por parte de Deus. Por isso, a oração da comunidade familiar pode tornar´se lugar da recordação comum e recíproca: efetivamente, a família é comunidade de gerações. Na oração, todos devem estar presentes: aqueles que vivem e os que já morreram, como também quantos ainda devem vir ao mundo. É necessário que na família se reze por cada um, na medida do bem que a família constitui para ele e do bem que ele constitui para a família. A oração corrobora mais solidamente um tal bem, precisamente como bem comum familiar. Mais ainda, aquela dá também início a este bem, de um modo sempre renovado. Na oração, a família reencontra´se como o primeiro «nós», no qual cada um é «eu » e «tu»; cada um é para o outro respectivamente marido ou esposa, pai ou mãe, filho ou filha, irmão ou irmã, avô ou neto. São assim as famílias, às quais me dirijo com esta Carta? Certamente não poucas são assim, mas os tempos em que vivemos manifestam a tendência para restringir o núcleo familiar ao âmbito de duas gerações. Isso sucede freqüentemente por causa do acanhamento das moradias disponíveis, sobretudo nas grandes cidades. Mas também e não raro, o mesmo se fica a dever à convicção de que mais gerações em conjunto são obstáculo à intimidade e tornam demasiado difícil a vida. Mas, não é precisamente este o ponto fraco? Há pouca vida humana nas famílias dos nossos dias. Faltam as pessoas com quem criar e partilhar o bem comum; e contudo, o bem, por sua natureza, exige ser criado e partilhado com os outros, porque «bonum est diffusivum sui», «o bem tende a difundir´se» (24). Quanto mais for comum o bem, tanto mais ele será próprio: meu ´ teu ´ nosso. Esta é a lógica intrínseca do viver no bem, na verdade e no amor. Se o homem sabe acolher esta lógica e segui´la, a sua existência torna´se verdadeiramente um «dom sincero».

O dom sincero de si

11. Depois de afirmar que o homem é a única criatura sobre a terra querida por Deus por si mesma, o Concílio acrescenta que ele «não se pode encontrar plenamente a não ser no sincero dom de si mesmo» (25). Poderia parecer uma contradição, mas não o é de fato. Trata´se, antes, do grande e maravilhoso paradoxo da existência humana: uma existência chamada a servir a verdade no amor. O amor faz com que o homem se realize através do dom sincero de si: amar significa dar e receber aquilo que não se pode comprar nem vender, mas apenas livre e reciprocamente oferecer. Por sua natureza, o dom da pessoa exige ser duradouro e irrevogável. A indissolubilidade do matrimônio deriva primariamente da essência de tal dom: dom da pessoa à pessoa. Nesta doação recíproca, manifesta´se o caráter esponsal do amor. Ao prestarem o consentimento matrimonial, os noivos identificam´se pelo seu nome próprio: «Eu... recebo´te por minha esposa (por meu esposo) a ti... e prometo ser´te fiel (...) por toda a nossa vida». Semelhante dom obriga muito mais forte e profundamente que tudo quanto possa ser «comprado» de qualquer modo e por qualquer preço. Dobrando os joelhos diante do Pai, do Qual provém toda a paternidade e maternidade, os futuros pais tornam´se conscientes de terem sido «redimidos». Foram realmente comprados por um alto preço, pelo preço do dom mais sincero possível, o sangue de Cristo, no qual participam por meio do sacramento. Coroamento litúrgico do consentimento matrimonial é a Eucaristia ´ sacrifício do «corpo entregue» e do «sangue derramado» ´, que no consentimento dos cônjuges encontra, de certo modo, uma sua expressão. Quando no matrimônio, o homem e a mulher se dão e recebem reciprocamente na união de «uma só carne», a lógica do dom sincero entra na vida deles. Sem ela, o matrimônio seria vazio, enquanto a comunhão das pessoas, edificada sobre tal lógica, se torna comunhão dos pais. Quando transmitem a vida ao filho, um novo «tu» humano se insere na órbita do «nós» dos cônjuges, uma pessoa que eles chamarão com um nome novo: «nosso filho...; nossa filha...». «Gerei um homem com o auxílio do Senhor» (Gn 4, 1), diz Eva, a primeira mulher da história: um ser humano, primeiramente esperado durante nove meses e depois «manifestado» aos pais, aos irmãos e às irmãs. O processo da concepção e do desenvolvimento no ventre materno, do parto, do nascimento serve para criar como que um espaço adequado, para que a nova criatura possa manifestar´se como «dom» : pois, tal é ela desde o princípio. Poder´se´ia, porventura, qualificar de outro modo este ser frágil e indefeso, dependente em tudo de seus pais e completamente confiado a eles? O recém´nascido dá´se aos pais pelo fato mesmo de vir à existência. O seu existir é já um dom, o primeiro dom do Criador à criatura. No recém´nascido, realiza´se o bem comum da família. Tal como o bem comum dos esposos encontra cumprimento no amor esponsal, pronto a dar e a acolher a nova vida, assim o bem comum da família se realiza mediante o mesmo amor esponsal concretizado no recém´nascido. Na genealogia da pessoa está inscrita a genealogia da família, que poderá ser recordada graças à anotação registada no Livro dos Batizados, mesmo se essa não passa de uma conseqüência social do facto «de ter vindo ao mundo um homem» (Jo 16, 21). Mas, é mesmo verdade que o novo ser humano constitui um dom para os pais? Um dom para a sociedade? À primeira vista, nada o parece indicar. Por vezes, o nascimento de um homem parece reduzir´se a um simples dado, registado como tantos outros nas estatísticas demográficas. Certamente o nascimento de um filho significa para os pais ulteriores canseiras, novos encargos econômicos, outros condicionamentos práticos: motivos estes que podem induzi´los na tentação de não desejarem um outro nascimento (26). Em alguns ambientes sociais e culturais então, a tentação faz´se ainda mais forte. Mas, o filho não é um dom? Vem só para consumir, e não para dar? Eis algumas perguntas inquietantes, de que o homem de hoje tem dificuldade em libertar´se. O filho vem ocupar espaço, quando espaço no mundo parece haver cada vez menos. Mas, é mesmo verdade que ele não dá nada à família e à sociedade? Porventura não é uma «parcela» daquele bem comum, sem o qual as comunidades humanas se fragmentam e correm o risco de morrer? Como negá´lo? A criança faz de si um dom aos irmãos, às irmãs, aos pais, à família inteira. A sua vida torna´se dom para os próprios doadores da vida, que não poderão deixar de sentir a presença do filho, a sua participação na existência deles, o seu contributo para o bem comum deles e da família. Não obstante toda a complexidade, ou mesmo a eventual patologia, da estrutura psicológica em certas pessoas, esta verdade permanece óbvia na sua simplicidade e profundidade. O bem comum da sociedade inteira reside no homem, que, como foi recordado, é «a via da Igreja» (27). Ele é sobretudo a «glória de Deus»: «Gloria Dei vivens homo», segundo a conhecida afirmação de S. Ireneu (28), que poderia ser traduzida também assim: «A glória de Deus é que o homem viva». Dir´se´ia que estamos aqui perante a definição mais elevada do homem: a glória de Deus é o bem comum de tudo aquilo que existe; o bem comum do gênero humano. Sim! O homem é um bem comum: bem comum da família e da humanidade, dos diversos grupos e das múltiplas estruturas sociais. Mas há que fazer uma significativa distinção de grau e modalidade: o homem é bem comum, por exemplo, da Nação a que pertence, ou do Estado de que é cidadão; mas, é´o de um modo muito mais concreto, único e irrepetível para a sua família; é´o não apenas enquanto indivíduo que faz parte da multidão humana, mas ainda como «este homem». Deus Criador chama´o à existência «por si mesmo» : e ao vir ao mundo, o homem começa na família a sua «grande aventura», a aventura da vida. «Este homem» tem, em qualquer caso, direito à própria afirmação por causa da sua dignidade humana. Precisamente esta dignidade é que estabelece o lugar da pessoa no meio dos homens, e antes de mais na família. Efetivamente, esta, mais do que qualquer outra realidade social, é o ambiente onde o homem pode existir «por si mesmo», mediante o dom sincero de si. Por isso, a família permanece uma instituição social que não se pode nem deve substituir: é «o santuário da vida» (29). Além disso, o fato de estar a ser dado à luz um menino, de «ter vindo ao mundo um homem» (Jo 16, 21) constitui um sinal pascal. É o próprio Jesus que o diz aos discípulos, antes da paixão e morte, como refere o evangelista João, ao comparar a tristeza causada pela sua partida ao sofrimento de uma mulher parturiente: «A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza (isto é, sofre), porque é chegada a sua hora; mas depois de ter dado à luz o menino, já se não lembra da aflição, pelo prazer de ter vindo ao mundo um homem » (Jo 16, 21). A «hora» da morte de Cristo (cf. Jo 13, 1) é ali comparada à «hora» da mulher no parto; o nascimento de um novo homem encontra a sua réplica perfeita na vitória da vida sobre a morte, operada pela ressurreição do Senhor. Uma confrontação dos dois eventos presta´se a diversas reflexões. Como a ressurreição de Cristo é a manifestação da vida de além´túmulo, assim também o nascimento de uma criança é manifestação da vida, desde sempre destinada, por meio de Cristo, à «plenitude da vida» que se encontra no próprio Deus: «Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). Eis assim desvendado no seu valor mais profundo o verdadeiro significado da expressão de S. Ireneu: «Gloria Dei vivens homo».É a verdade evangélica do dom de si, sem o qual o homem não se pode «encontrar plenamente», e que permite avaliar quão profundamente este «dom sincero» esteja radicado no dom de Deus Criador e Redentor, na «graça do Espírito Santo», cuja «efusão» sobre os esposos é implorada pelo celebrante no rito do matrimônio. Sem tal «efusão» seria verdadeiramente difícil compreender tudo isto e cumpri´lo como vocação do homem. E, no entanto, há tanta gente que o intui! Muitos homens e mulheres fazem própria esta verdade, chegando a vislumbrar que só nela encontram «a Verdade e a Vida» (Jo 14, 6). Sem esta verdade, a vida dos cônjuges e da família não consegue atingir um sentido plenamente humano. Eis por que a Igreja nunca se cansa de ensinar e testemunhar tal verdade! Embora manifeste uma materna compreensão pelas não poucas e complexas situações de crise, em que as famílias se vêem envolvidas, como também pela fragilidade moral de todo o ser humano, a Igreja está convencida de que deve absolutamente permanecer fiel à verdade relativa ao amor humano: caso contrário, atraiçoar´se´ia a si própria. Afastar´se desta verdade salvífica, seria como fechar à fé «os olhos do coração» (Ef 1, 18), que, pelo contrário, devem permanecer sempre abertos à luz, com que o Evangelho ilumina as vicissitudes humanas (cf. 2 Tm 1, 10). A consciência daquele dom sincero de si, pelo qual o homem «encontra´se a si mesmo», deve ser solidamente renovada e constantemente garantida, defronte às muitas oposições que a Igreja encontra por parte dos fautores de uma falsa civilização do progresso (30). A família exprime sempre uma nova dimensão do bem para os homens, e, por isso, suscita uma nova responsabilidade. Trata´se da responsabilidade por aquele singular bem comum, no qual está incluído o bem do homem: de cada membro da comunidade familiar; um bem certamente «difícil» (bonum arduum), mas fascinante.

A paternidade e a maternidade responsável

12. No delineamento da presente Carta às Famílias, é chegado o momento de acenar a duas questões conexas entre si. Uma, mais genérica, diz respeito à civilização do amor; a outra, mais específica, refere´se à paternidade e maternidade responsável. Dissemos já que o matrimônio suscita uma singular responsabilidade pelo bem comum: primeiro dos cônjuges, depois da família. Este bem comum é constituído pelo homem, pelo valor da pessoa e por quanto representa a medida da sua dignidade. O homem possui em si esta dimensão em qualquer sistema social, econômico e político. No âmbito do matrimônio e da família, porém, esta responsabilidade torna´se, por muitas razões, ainda mais «empenhativa». Não é sem motivo que a Constituição pastoral Gaudium et spes fala de «promoção da dignidade do matrimônio e da família». O Concílio vê em tal «promoção» uma tarefa tanto da Igreja como do Estado; todavia, ela permanece, em cada cultura, primariamente um dever das pessoas que, unidas em matrimônio, formam uma família específica. A «paternidade e maternidade responsável» exprimem o compromisso concreto de atuar esse dever, que, no mundo contemporâneo, reveste novas características. De modo particular, paternidade e maternidade responsável referem´se diretamente ao momento em que o homem e a mulher, unindo´se «numa só carne», podem tornar´se pais. É momento impregnado de um valor peculiar, quer pela sua relação interpessoal quer pelo seu serviço à vida: eles podem´se tornar progenitores ´ pai e mãe ´, comunicando a vida a um novo ser humano. As duas dimensões da união conjugal, a unitiva e a procriadora, não podem ser separadas artificialmente sem atentar contra a verdade íntima do próprio ato conjugal (31).

Este é o ensinamento constante da Igreja, e «os sinais dos tempos», de que hoje somos testemunhas, oferecem novos motivos para reafirmá´lo com particular vigor. S. Paulo, tão atento às necessidades pastorais do seu tempo, exige clara e firmemente que se «insista oportuna e inoportunamente» (cf. 2 Tim 4, 2), sem qualquer temor pelo fato de «já não se suportar a sã doutrina» (cf. 2 Tim 4, 3). As suas palavras são bem conhecidas de quantos, compreendendo profundamente as vicissitudes do nosso tempo, esperam que a Igreja não só não abandone «a sã doutrina», mas antes, a anuncie com renovado vigor, perscrutando nos atuais «sinais dos tempos» as razões para um ulterior e providencial aprofundamento da mesma.

Muitas destas razões encontram´se já nas próprias ciências que, partindo do antigo tronco da antropologia, se desenvolveram em várias especializações, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia e as suas posteriores ramificações. De certo modo, todas giram à volta da medicina, simultaneamente ciência e arte (ars medica) ao serviço da vida e da saúde do homem. Mas as razões, a que se acena aqui, emergem sobretudo da experiência humana que é múltipla e, em certo sentido, precede e segue a própria ciência.

Os cônjuges aprendem por experiência própria o que significam a paternidade e a maternidade responsável; aprendem´no também graças à experiência de outros casais que vivem em condições análogas, e tornam´se assim mais abertos aos dados das ciências. Poder´se´ia dizer que os «peritos» como que aprendem dos «cônjuges», para serem depois, por sua vez, capazes de instruí´los competentemente acerca do significado da procriação responsável e dos modos de a realizar.

Este argumento foi tratado amplamente nos Documentos conciliares, na Encíclica Humanae vitae, nas «Proposições» do Sínodo dos Bispos de 1980, na Exortação apostólica Familiaris consortio, e em intervenções análogas até à Instrução Donum vitae da Congregação para a Doutrina da Fé. A Igreja ensina a verdade moral acerca da paternidade e maternidade responsável, defendendo´a das visões e tendências errôneas hoje difusas. Por que motivo faz isto a Igreja? Será, talvez, porque não se dá conta das problemáticas invocadas por quantos aconselham cedências neste âmbito e procuram convencê´la inclusivamente com pressões indevidas, quando não mesmo com ameaças? Não raro, de fato, o Magistério da Igreja é acusado de estar superado já e fechado às instâncias do espírito dos tempos modernos; de realizar uma ação nociva para a humanidade, e inclusive para a própria Igreja. Ao manter´se obstinadamente nas próprias posições ´ diz´se ´, a Igreja acabará por perder popularidade e os fiéis afastar´se´ão cada vez mais dela.

Mas como é possível sustentar que a Igreja, especialmente o Episcopado em comunhão com o Papa, seja insensível a problemas tão graves e atuais? Foi precisamente neles que Paulo VI entreviu questões de tal forma vitais que o impeliram a publicar a Encíclica Humanae vitae! O fundamento sobre o qual se baseia a doutrina da Igreja acerca da paternidade e maternidade responsável é bem amplo e sólido. O Concílio indica´o, antes de mais, no ensinamento sobre o homem, quando afirma que ele é «a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma» e que não pode «encontrar´se plenamente a não ser no dom sincero de si mesmo» (32). Isto porque ele foi criado à imagem e semelhança de Deus e redimido pelo Filho unigênito do Pai, feito homem por nós e para nossa salvação.

O Concílio Vaticano II, particularmente atento ao problema do homem e da sua vocação, afirma que a união conjugal, referida na Bíblia pela expressão «uma só carne», pode ser compreendida e explicada plenamente apenas recorrendo aos valores da «pessoa» e do «dom». Cada homem e cada mulher realizam´se em plenitude mediante o dom sincero de si e, no caso dos esposos, o momento da união conjugal constitui uma experiência muito particular disso mesmo. É então que o homem e a mulher, na «verdade» da sua masculinidade e feminilidade, se tornam recíproco dom. Toda a vida no matrimônio é dom; mas isso torna´se singularmente evidente quando os cônjuges, oferecendo´se reciprocamente no amor, realizam aquele encontro que faz dos dois «uma só carne» (Gn 2, 24).

Eles vivem, então, um momento de especial responsabilidade, também em razão da potencialidade procriadora conexa com o ato conjugal. Os esposos podem, naquele momento, tornar´se pai e mãe, dando início ao processo de uma nova vida humana, que depois se desenvolverá no seio da mulher. Se a mulher é a primeira que dá conta de ter´se tornado mãe, o homem com quem se uniu em «uma só carne» toma consciência, por sua vez e através do testemunho dela, de ter´se tornado pai. Da potencial e, em seguida, efetiva paternidade e maternidade, ambos são responsáveis. O homem não pode deixar de reconhecer ou não aceitar o resultado de uma decisão que foi também sua. Não se pode esconder por detrás de expressões como: «não sei», «não queria», «foste tu que quiseste». A união conjugal comporta em todo o caso a responsabilidade do homem e da mulher, responsabilidade potencial que se torna efetiva quando as circunstâncias o impuserem. Isto vale sobretudo para o homem que, apesar de ser também ele artífice do desencadeamento do processo gerador, fica biologicamente distanciado do mesmo: é na mulher, de fato, que aquele se desenvolve. Como poderia o homem não se sentir comprometido nele? Impõe´se que ambos, o homem e a mulher, assumam conjuntamente, perante si mesmos e os outros, a responsabilidade da nova vida por eles suscitada.

Esta é uma conclusão partilhada pelas próprias ciências humanas. Mas é preciso ir mais longe, analisando o significado do ato conjugal à luz dos referidos valores da «pessoa» e do «dom». É o que faz a Igreja com o seu constante ensinamento, em particular no Concílio Vaticano II. No momento do ato conjugal, o homem e a mulher são chamados a confirmar de modo responsável o dom recíproco, que de si fizeram na aliança matrimonial. Ora, a lógica do dom ao outro na totalidade de si mesmo comporta a potencial abertura à procriação: o matrimônio é chamado assim a realizar´se ainda mais plenamente como família. Sem dúvida, o dom recíproco do homem e da mulher não tem como único fim o nascimento dos filhos, mas é em si mesmo mútua comunhão de amor e de vida. Deve ser sempre garantida a verdade íntima de tal dom. «Íntima» não é sinônimo de «subjetiva» : significa, sim, essencialmente coerente com a verdade objetiva daquele e daquela que se dão. Jamais a pessoa pode ser considerada um meio para alcançar um fim; nunca, sobretudo, um meio de «prazer». Ela é e deve ser apenas o fim de todo o ato. Somente então, a ação corresponde à verdadeira dignidade da pessoa. Ao concluir a nossa reflexão sobre este argumento tão importante e delicado, desejo dirigir uma palavra de particular encorajamento sobretudo a vós, caríssimos cônjuges, e a todos aqueles que vos ajudam a compreender e a pôr em prática o ensinamento da Igreja sobre o matrimônio, sobre a maternidade e paternidade responsável. Penso de modo especial nos Pastores, nos muitos peritos, teólogos, filósofos, escritores e editores, que não se acomodam ao conformismo cultural dominante, mas estão corajosamente decididos a «ir contra a corrente». Aquela palavra de encorajamento vai ainda para um grupo cada vez mais numeroso de peritos, médicos e educadores, verdadeiros apóstolos leigos, para os quais a promoção da dignidade do matrimônio e da família se tornou uma tarefa importante da sua vida. Em nome da Igreja, digo a todos o meu obrigado! Sem eles, que poderiam fazer os Sacerdotes, os Bispos e até mesmo o próprio Sucessor de Pedro? Disto me fui convencendo sempre mais, desde os primeiros anos do meu sacerdócio, quando comecei a sentar´me no confessionário, para partilhar as preocupações, os medos e as esperanças de tantos esposos: encontrei casos difíceis de revolta e recusa, mas ao mesmo tempo tantas pessoas admiravelmente responsáveis e generosas! Enquanto escrevo esta Carta, tenho presente todos estes cônjuges e abraço´os com o meu afeto e a minha oração.

As duas civilizações

13. Queridas famílias, a questão da paternidade e da maternidade responsável insere´se na temática global da «civilização do amor», de que desejo falar´vos agora. De quanto ficou dito, resulta claramente que a família está na base daquela que Paulo VI designou como «civilização do amor» (33), expressão que entrou depois no ensinamento da Igreja e se tornou já familiar. Hoje é difícil pensar numa intervenção da Igreja, ou então sobre a Igreja, que prescinda da referência à civilização do amor. A expressão está ligada com a tradição da «igreja doméstica» do cristianismo nos seus primórdios, mas possui uma precisa referência também à época contemporânea. Etimologicamente o termo «civilização» deriva da palavra latina civis (cidadão), sublinhando a dimensão política da existência de cada indivíduo. Todavia o sentido mais profundo do termo «civilização» não é tanto político como sobretudo «humanístico». A civilização pertence à história do homem, porque corresponde às suas exigências espirituais e morais: criado à imagem e semelhança de Deus, ele recebeu o mundo das mãos do Criador com o compromisso de o plasmar à própria imagem e semelhança. Precisamente do cumprimento desta tarefa provém a civilização, que, em última análise, não é senão a «humanização do mundo».

Portanto, civilização tem, de certo modo, o mesmo significado que «cultura». Assim poder´se´ia dizer também: «cultura do amor», embora seja preferível ater´se à expressão tornada já familiar. A civilização do amor, no sentido atual do termo, inspira´se nas palavras da Constituição conciliar Gaudium et spes: «Cristo (...) revela plenamente o homem a si mesmo e descobre´lhe a sua vocação sublime» (34). Por isso pode´se afirmar que a civilização do amor parte da revelação de Deus que «é amor», como diz S. João (Jo 4, 8.16), e aparece magistralmente descrita pelo apóstolo Paulo no hino à caridade da Primeira Carta aos Coríntios (13, 1´13). Tal civilização está intimamente conexa com o amor «derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi concedido» (Rom 5, 5), e cresce graças àquele cultivo constante de que fala tão incisivamente a alegoria evangélica da videira e dos ramos: «Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor. Toda a vara que em Mim não dá fruto, Ele corta´a, e limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto» (Jo 15, 1´2).

À luz destes e doutros textos do Novo Testamento, é possível compreender o que se entende por «civilização do amor», e por que a família está organicamente unida com tal civilização. Se a primeira «via da Igreja» é a família, importa acrescentar que também a civilização do amor é «via da Igreja», que caminha no mundo e chama a seguir por tal via as famílias e as outras instituições sociais, nacionais e internacionais, precisamente por causa das famílias e através das famílias. A família depende realmente e por diversos motivos da civilização do amor, onde encontra as razões do seu ser família. E, ao mesmo tempo, a família é o centro e o coração da civilização do amor.

Não existe, todavia, verdadeiro amor sem a consciência de que Deus «é Amor», e que o homem é a única criatura na terra, chamada por Deus à existência «por si mesma». O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, não pode «encontrar´se» plenamente senão pelo dom sincero de si. Sem um tal conceito do homem, da pessoa e da «comunhão de pessoas» na família, não pode existir a civilização do amor; e vice´versa, sem a civilização do amor é impossível um tal conceito de pessoa e de comunhão de pessoas. A família constitui a «célula» fundamental da sociedade. Mas tem necessidade de Cristo ´ «videira» da qual os «ramos» extraem a linfa ´ para que esta célula não fique exposta à ameaça de uma espécie de desenraizamento cultural, que pode vir tanto do interior como do exterior. De fato, se por um lado existe a «civilização do amor», por outro lado permanece a possibilidade de uma «anti´civilização» destruidora, como se confirma hoje por tantas tendências e situações concretas.

Quem pode negar que a nossa seja uma época de grande crise, que se exprime sobretudo como profunda «crise da verdade»? Crise da verdade significa, em primeiro lugar, crise de conceitos. Os termos «amor», «liberdade», «dom sincero», e até mesmo os de «pessoa», «direitos da pessoa», significarão na realidade aquilo que por sua natureza contêm? Eis porque se revela tão significativa e importante para a Igreja e para o mundo ´ sobretudo no Ocidente ´ a Encíclica sobre o «esplendor da verdade» (Veritatis splendor). Somente se a verdade acerca da liberdade e da comunhão das pessoas no matrimônio e na família readquirir o seu esplendor, é que se desencadeará verdadeiramente a edificação da civilização do amor, e será então possível falar eficazmente ´ como faz o Concílio ´ de «promoção da dignidade do matrimônio e da família» (35).

Porque é assim tão importante o «esplendor da verdade»? É´o, primariamente, por contraste: o desenvolvimento da civilização contemporânea está ligado a um progresso científico´tecnológico que se atua de modo freqüentemente unilateral, apresentando por conseguinte características puramente positivistas. O positivismo, como

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